sábado, 16 de janeiro de 2010

Cor clausum

Já fizeste que chegue. Já estragaste coisas demais. Feriste gente quanto baste. Feriste quem melhor te queria. E acabaste por te ferir a ti próprio, mais profundamente do que alguma vez feriste alguém. Por isso agora regressas ao lugar que é teu e de onde só voltarás a sair quando mereceres tudo o que de bom te foi oferecido. Até lá ficas trancado, longe de tudo e todos. Tu sabes que é para o teu bem e que um dia vais ficar grato por isto.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Bolinar

Nada mais existe que o dia de hoje. A vida é agora. O momento é tudo. Pensar mais além é como caminhar com os olhos postos no horizonte, tão certo e seguro é nunca lá chegar. De agora em diante, só existe o chão firme e um passo após o outro. O futuro é névoa e é assim que deve ser. Sem plano traçado nem rumo definido. Sem escolher ventos nem marés. Navegando à bolina, se assim tiver de ser. De braços abertos para dar o corpo às balas. O que vier, morre. Se não matar primeiro.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Condicional

Se eu tivesse feito diferente, hoje ainda seria tudo igual. A ontem, a anteontem, ao dia antes e a todos os outros dias até a bolha rebentar. Aos dias em que o copo foi lenta mas continuamente esvaziando até já não haver nada para beber. E a culpa? Minha. Toda minha. Estúpido eu; asno eu. Ou nem isso. Aposto que até os asnos aprendem com os erros. Antes o fosse, e não estaria agora a lamentar que se eu tivesse sido diferente, ainda hoje tudo seria igual.

domingo, 15 de novembro de 2009

Incendiários

Quando o escuro e o frio apertam, acendemos uma fogueira. O fogo aquece, ilumina e aconchega. Confortados, adormecemos à luz protectora das labaredas, sentindo-nos seguros com aquele flamejar crepitante. Mas aos poucos a chama faz-se brasa e a brasa se faz cinza. Para arder, o fogo precisa da lenha que não se carrega enquanto se dorme. E assim vamos ateando fogueiras por aí, aquecendo o sono até estas se voltarem a apagar. Já não sabemos viver sem aquele pequeno incêndio. Porque queremos esquecer como era antes de o termos e nos lembramos muito bem de como ele nos fez sentir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Pára-raios

Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Não sei como é possível acreditar nesta treta. Cai, pois. Cai as vezes que entender do alto da sua sádica e exasperante insistência em nos carbonizar a vida. Vendo bem, até pode existir alguma verdade no chavão. Duas vezes é mesmo muito pouco.

Raios me partam.

domingo, 21 de setembro de 2008

Revisitado

"Não: não quero nada", disse ele. Perante tanta insistência, repetiu: "já disse que não quero nada". E prosseguiu, desenrolando um extenso protesto contra conclusões, estéticas, moral e metafísica. Censurando quem lhe queria pegar no braço e fazer dele companhia para tudo. Chamando à liça o direito a ser doido e a estar sozinho e em paz. Bendito seja! Assim já fico a saber. Quando me vierem perguntar, já sei o que vou responder. Direi simplesmente: "quero o mesmo que aquele senhor".

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Introretrospecção

Vejo, ouço, sinto e viajo. Uma imagem, um aroma, um som. E sem sair do sítio estou de novo lá. Aquela hora que já passou, aquela atmosfera que já respirei, aquela sensação que me invadiu sem pedir licença, já não sei quando, onde ou porquê. Uma qualquer dessas antigas caixas de música, túmulos soterrados pelo pó do tempo que não pára. O sorriso aberto e incontido de quem vive o momento. A certeza triste mas segura de que "antes é que era bom", e não volta mais.